#7 Rotina Noturna
Fui pra faculdade assim como sempre, com meus dois pés, que às vezes andam e às vezes param no transporte lotado. Cheguei cedo, entrei na biblioteca, procurei um livro de código 882.990 mas a prateleira terminava no 882.670 e pulava para o 883, umas diabas de livros desaparecidos da minha vista, não só aquele que procurava. Pensei em dar de detetive, coisa que gosto muito, mas desisti porque preguiça. Olhei no carrinho mais próximo e nada das diabas dos livros desaparecidos, desisti e fui jantar, milagrosamente sem fila alguma temi o pior, a comida ia estar com aquele gosto de não deveria ter colocado no prato. Dito e feito, o frango estava com um gosto de geladeira suja, não que eu já tenha lambido uma geladeira suja pra saber o gosto, mas é um negócio assim que dá refluxo. Lembrei de quando morava com uma mulher muito bagunceira e faltei um dia no trabalho pra limpar a geladeira inteirinha, porque não aguentava nem beber água de dentro dela, tudo tava com gosto de geladeira suja. O frango inteiro que peguei eu devolvi e todo o resto da comida também porque minha frescura empesteou o prato todo e saí chateada do bandejão. Era cedo ainda, estava sozinha por escolha e por falta de comunicação, confundi a mensagem da amiga que falou “pode ir” com significado de “espera eu pra comer” com “vai sozinha otária”. Minha barriga roncava porque tinha posto um total de duas colheres de janta na boca e fui comprar um pão de queijo na barraquinha que fica mais longe da minha faculdade porque é mais barato e minha carteira ta contando moeda e acumulando teia. Desci o morrinho e uma placa surgiu QUENTÃO, ignorei a fome e fui direto no encontro da mulher que mandava bala num copo de quentão, quero um, “eu to bebendo mais que vendendo” ela me disse com todo o gosto. O conhaque ardia com o gengibre, a golada caiu como abraço e como fogo queimando no estômago com fome e tomando antibiótico. Comprei o pão de queijo para aliviar e fui até perto da minha faculdade sentar, metade do tempo curtindo meu quentão e a outra metade desconfortável no banco de pedra que tem do lado de fora. Um muleque sentou do meu lado com um lanchão de dar gosto, achei que ia bater um pratão ali, mas abriu a mochila e tirou uma versão de vestibular de Os Sertões e uma flauta doce, botou os dois entre a gente e eu achando que ele ia fazer uma lírica com a tragédia dos sertões, falou “pra você” eu, que não tava querendo tocar flauta e nem ler aquela bitela, virei para o armarinho de doação ali perto da gente e disse pra deixar lá pra alguém pegar, mas vi que estava falando sozinha porque o menino saiu fora, largou os negócios tudo em cima do banco e eu que fiquei daquele jeito sem saber o que fazer levantei também. Não pensei que eu mesma podia ter posto ali no armarinho, só fiquei envergonhada que se alguém me visse do lado daquele livro surrado junto com uma flauta iam achar que era algum tipo de apresentação contemporânea. Tudo se encaixava bem para uma poética de intervenção, mas no fim não deixou de ser poético, quando deixei lá em cima do banco, fazendo entrar em reflexão vários outros perdidos pela faculdade. E essa foi minha defesa para meu próprio julgamento moral, de ter largado coisas que não eram nem minhas, enquanto só estava preocupada em terminar meu quentão, que já estava morno, antes da aula começar.